20 setembro 2007

Beth

Ali estava ela, envolta em espasmos de burocracia e registros. A mão esquerda escorava o crânio seco em pensamentos, que ao mormaço das três da tarde pesava como o próprio mundo. Essa mão, em punho semi-cerrado contra a bochecha, turgia de rugas o rosto enfadado. Seus dedos, embebidos em tinta azul de carimbo, marcavam a pele já amolecida pelo calor.

Destacava-se naquela mão a afiada unha do dedo menor. Ela ganhava das outras em tamanho e impertinência, e apostava ao teto suas vontades. Ou melhor, sua vontade de ter vontades. De parar, por uma vez, e balançar com batuta de mestre a derramada rotina. Levantar-se de impulso da cadeira e rodar uma última vez aquela sala que mais parecia uma gaiola. E cuspir pra fora um grito do fundo da alma para encher os vizinhos de engasgo, fugindo do protocolo, do código, da ata de escritura, do livro-maior e da própria vida. E chutar o tapete com aquele desenho sempre sujo, e derrubar finalmente o quadro velho e agourento do prefeito com aquele sorrisinho bobo e enterrar definitivamente o enferrujado ventilador que não pára de ranger e depois destruir de um golpe as cortinas ralas que não impedem a entrada do sol insuportável e rasgar cada papel inútil espalhado sobre a mesa e avançar no teclado da máquina de escrever até que não sobre tecla nenhuma e voar sobre as canetas sempre engasgadas e o grampeador que só prega errado e jogar tudo ao chão de tacos soltos para poder finalmente esganar e degolar bem rápido o sujeito cidadão parado em sua frente que para ela não passa de um número de cadastro com aqueles olhos de fantasma que não conseguem entender nem preencher direito a porra do formulário verde dois bê.

Mas essa unha, em vez disso, não faz mais que meter-se ao centro da orelha esquerda, apaziguando uma coceira que vinha da falta de pensamentos. E aí, dentro de um mesmo suspiro, carimbo visto caneta engasgada três grampos carimbo com data mais cópia simples barulho de teclas no formulário verde dois bê.

Ainda três da tarde. Sala vazia, cortina inútil, crânio sem pensamentos, seu rosto volta a amolecer no calor e na tinta.